Quando pensamos em Peter Pan, associamos diretamente à imagem bem consolidada em nossas cabeças da aventura que Wendy e seus irmãos realizaram à Terra do Nunca. Lembramos das fadas, dos piratas, das sereias, dos índios, do crocodilo que engoliu um relógio e do são bernardo que exerce papel de babá das crianças.
A história deliciosa do menino que não cresce faz jus às numerosas adaptações teatrais e cinematográficas da trama. Porém os desafortunados que conhecem apenas essas versões não podem imaginar o fator mais notável desta obra - a escrita de James Barrie.
Enquanto demais autores de livros infantis se preocupam em ressaltar o quão fantásticos são seus universos, Barrie abusa de recursos como afirmativas categóricas - com destaque para a frase de abertura do livro: "All children, except one, grow up." - e referências a histórias externas ao livro (por diversas vezes ele descreve o capitão James Hook como o único homem que Barba Negra temeu) para tornar o inverossímil inquestionável.
Outro recurso interessante para tratar a verossimilhança é a presença de elementos inusitados na rotina da família Darling, como Nana, a babá canina mencionada anteriormente. Mas veja bem: Nana não fala ou gesticula de forma prosopopeica. Barrie nos conta o que ela pensa e faz, deixando por conta de nossa imaginação os detalhes do método. Por exemplo, Nana dava a Michael seu remédio todas as noites. Barrie não nos diz se ela pega uma colher com a boca ou o vidro com as patas e assim não abre espaço para questionamento. Após retirar nosso chão e nos preparar para esses elementos curiosos - porém aparentemente viáveis - ele nos explica como em contos mitológicos porque algumas coisas são do jeito que são. Se vamos dormir inquietos e agitados e acordamos tranquilos é porque nossas mães entram em nossas cabeças, dobram os pensamentos agradáveis e os guardam em gavetas e descartam os maldosos e tristes.
Ou seja, Wendy não é retirada de um ambiente entediante para uma terra fantástica como acontece com Dorothy e Alice. Wendy viveu coisas muito reais, você é que até então não tinha observado por esta ótica. Ou observou e se esqueceu. Porque Peter Pan trata de tempo e memória (ou falta de), e de como nosso inevitável amadurecimento nos retira capacidades incríveis que possuíamos e acrescenta preocupações fúteis como carreira e status social.
9 comentários:
Post que exige pelo menos algumas continuações de tantas coisas maravilhosas que existem nessa obra
"Temos força suficiente para a política e o comércio, para a arte e a filosofia, mas não o suficiente para brincar." - G.K. Chesterton
Agora é só não parar. Mais textos!!! <3
bela reflexão. bjs moms
Tô besta! Delícia de surpresa, encontrar reflexões construtivas, inteligentes, com utilização de gancho que nos seduz de cara, pela referida obra mestra sobre o clássico conceito a respeito da genial e "artística simplicidade" do olhar infantil.
Muito bem escrito.
Parabéns.
Aguardo o próximo.
Beijos.
Vera Versiani.
Bê, obrigada por mais essa inspiração <3
Moms obrigada!! :*
Vera, adorei sua visita e elogios, embora não saiba bem se os mereço!
Voltem sempre!!
Beijos
Ni!
Eu compartilho de sua observação sobre a escrita do Barrie. E acho que os bons escritores infantis (e os bons escritores) passam longe de serem apenas "descrevedores de ações", sabe? É por isso que tantas adaptações dessas obras são burocráticas, pobres: as personagens fazem as mesmas coisas, dizem os mesmos diálogos — mas as boas obras vão muito além de uma enumeração de passos a cumprir/cumpridos. Em Barrie há todo um mundo descrito, é certo; mas seu estilo fluido e sugestivo é muito particular e não basta apenas ordenar as ações das personagens e as situações do livro para dar conta da imensa beleza que é esse romance. É como Lobato, como Carroll e como todos os outros prosadores para a juventude que ficaram célebres: é não só O QUE contar, mas COMO contar. E Barrie conta lindamente.
Sobre os mundos fantásticos, também de acordo: é ver com os olhos da infância, e não ver com olhos "reais" as coisas que são despropositadas. A mágica não é sempre uma questão de ótica?
P.S.: Essa primeira frase do livro me arrepia. Perfeição.
P.S.2: Que lindo esse frontispício que você colocou aí.
Concordo com tudo que você falou!
Isso do burocrático é muito verdade. Uma trama interessante por si só não garante envolvimento com o mundo criado, com o protagonista... e isso faz toda a diferença. Já pelo final do livro, no meio da narrativa Barrie começa a descrever a Mrs. Darling e acrescenta:"Some like Peter best, and some like Wendy best, but I like her best" e com isso reverte qualquer impressão de que as crianças tinham mais é que ficar na terra do nunca. Muito difícil conseguir isso em adaptações.
Fico feliz que tenha gostado do post! Quem sabe em breve não comento algo sobre Alice? :)
Ei, acabei de ver que não havia mesmo respondido. E eu adoro essa frase do Barrie sobre a Mrs. Darling. Que tom perfeito, que graça absurda! Parece mesmo a espontaneidade de uma criança...
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