Jeu de mots, traduzido literalmente como "jogo de palavras", é o termo francês para trocadilhos e demais construções que exploram a sonoridade similar de palavras distintas. Termo esse muito mais adequado para descrever um dos muitos talentos de Lewis Carroll. Afinal, Carroll brinca com as palavras. Como, por exemplo, na linda poesia concreta a seguir ilustrando a imaginação de Alice para a história de um rato, a partir de uma brincadeira entre as palavras tale (conto) e tail (cauda).
"The master was an old turtle - we used to call him Tortoise."
"Why did you call him Tortoise, if he wasn't one?" Alice asked.
"We called him Tortoise because he taught us."
Aqui precisei pronunciar em voz alta para perceber a homofonia, tamanha a distinção na grafia de tortoise e taught us (algo como tótâs, já que o inglês britânico praticamente não pronuncia o R).
Para chegar a esse efeito, Carroll usa de conhecimento e malícia, como um músico que sabe qual nota tocar para nos fazer esperar ansiosamente pela próxima.
Em Através do Espelho, quando Alice está perdida na floresta com placas confusas indicando a casa de Tweedledee e o lar de Tweedledum, a surpresa é enorme quando o capítulo é finalizado por uma frase sem ponto final e de transitividade duvidosa.
(...) she recovered herself, feeling sure that they must be
Be o quê, oh céus? Cadê o objeto direto que a tia me ensinou?
E aí você vira a página e vê o seguinte:
E você junta tudo: "(...) feeling sure that they must be Tweedledum and Tweedledee". E aí que rimou. Entre os capítulos de um texto em prosa, ele faz poesia.
Carroll também incorpora personagens de outras histórias e canções infantis aos mundos que Alice visita - o que claramente influenciou seus fãs Barrie e Monteiro Lobato. Destaco a interação de Alice com Humpty Dumpty, personagem de uma nursery rhyme (tipo de canção tradicional destinada ao público infantil), que no livro de Carroll diz atribuir às palavras o significado que bem entende.
Alice e Humpty Dumpty e o texto de Carroll fazendo referência à letra da canção |
When I make a word do a lot of work like that, I always pay it extra |
Mas não só autores infantis foram influenciados por Carroll. Ele certamente foi responsável pela representatividade do gênero nonsense na cultura da Inglaterra - como nas letras insanas dos Beatles - e no humor mundial até os dias de hoje. E até por isso esses livros de 1860 permanecem atuais.
O mérito dessa fama não é só de Carroll: considera-se que nenhuma edição de Alice é completa se não trouxer as ilustrações de Tenniel. Carroll, que por diversas vezes conversa diretamente com o leitor, chega a mencionar as ilustrações em seu texto.
"Se você não sabe o que é um Grifo, veja a figura" |
Tanto Alice's Adventures in Wonderland como Through the looking glass - and what Alice found there são repletos de belos poemas, das divertidas induções lógicas de Alice e de muita brincadeira com as palavras.
Para encerrar, deixo vocês com uma provinha do poema Jabberwocky, no melhor estilo nonsense, que Alice encontra com letras espelhadas (naturalmente, afinal assim são os textos no mundo através do espelho) e depois pede pra Humpty Dumpty explicar.
Jabberwocky |